Ed–16–Matéria Doutrinária

por André Steagall Gertsenchtein

A lei divina ou natural

Logo que comecei a participar mais ativamente do estudo semanal em minha casa, passamos a ler os livros da Obra Básica[1], em vez dos livros de crônicas lidos quando minha irmã mais velha e eu éramos incapazes de seguir leitura mais complexa.

Ganhamos, minha irmã e eu, nossos exemplares do Livro dos Espíritos (que tenho até hoje). Tomei banho e me arrumei - melhor camisa, calça de sair - afinal, havíamos combinado que eu e ela faríamos a leitura das perguntas de forma alternada.

Coube à minha irmã, mais velha, a leitura da primeira pergunta. Era sobre Deus:

1 O que é Deus?

– Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.

Fiquei incomodado (com dez anos!). Pareceu-me uma resposta evasiva. "Vai ver que na próxima pergunta eles explicam melhor...", pensei. E a próxima quem leu foi eu:

2 O que devemos entender por infinito?

– O que não tem começo nem fim; o desconhecido; tudo o que é desconhecido é infinito.

Fiquei mais frustrado. "Acho que na verdade ninguém sabe direito explicar o que é Deus e ficam enrolando...", pensei. Mas esperei até a terceira pergunta, já que era vez da minha irmã, para me queixar ao meu pai:

3 Poderíamos dizer que Deus é infinito?

– Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, que é insuficiente para definir as coisas que estão acima de sua inteligência. Deus é infinito em suas perfeições, mas o infinito é uma abstração. Dizer que Deus é infinito é tomar o atributo de uma coisa por ela própria, é definir uma coisa que não é conhecida por uma outra igualmente desconhecida.

Aí já era demais! Fiquei com certeza que ninguém sabia direito o que era Deus e que assim era melhor largar aquele Kardec e voltar a ler os livros de contos (Irmão X) que meus pais liam antes. Reclamei com meu pai que a explicação era enrolada e que assim ninguém nunca ia entender nada. Se o resto do livro fosse assim, era melhor deixarmos este Kardec de lado e encontrar outra coisa para estudar.

Paciente, meu pai explicou ser difícil explicar a natureza de Deus em palavras que pudéssemos entender por conta de nossas próprias limitações. Falou que era melhor entender Deus por suas obras. "Sei..." - pensei. "Ele também não entendeu nada e não quer admitir...".

Continuamos, apesar dos meus protestos, a estudar O Livro dos Espíritos. Apesar de resistir em admitir, fui me interessando pelos assuntos, pois, ao contrário das explicações sobre Deus, o resto era muito bem explicadinho.

A reencarnação, por exemplo, resolvia todas as minhas dúvidas sobre a injustiça aparente das diferenças entre situações das pessoas. Por que havia pobres e ricos? Cultos e incultos? Agressivos e pacíficos? Donde os afetos e desafetos aparentemente gratuitos?

A pluralidade dos mundos habitados, resolvendo a questão (ilógica) de sermos os únicos seres inteligentes num universo tão grande e rico.

A evolução, tão interessante, tendo por grande ferramenta a própria reencarnação, me parecia ideia de uma inteligência impressionante.

Mas eu continuava invocado com a explicação de Deus...

E assim prosseguimos com a leitura, por dois anos. Passei a adorar as explicações de Kardec, tão claras, a respeito de temas sobre os quais, em outros lugares, não havia qualquer explicação.

Éramos espíritos criados simples e ignorantes. Com as diversas experiências, íamos adquirindo livre-arbítrio e passávamos a participar da escolha de nossas provas e, consequentemente, influenciar em nossa própria evolução. Todos seríamos perfeitos.

Percebi que a lógica daquilo que aprendia - aquela lei que meu pai chamava de "Lei Natural" - era educativa, e não punitiva. Era de uma justiça cristalina. Mais inteligente que a lei aplicada no nosso mundo...

E assim terminamos, dois anos depois, a leitura do Livro dos Espíritos.

Havia achado o livro muito legal. As coisas que ele falava eram lógicas, justas e belas. A Lei Natural que ele pregava era de uma sabedoria impressionante.

E (melhor de tudo), fora aquela "briga" inicial com Deus, entendi tudo! Era quase como se alguém muito, mas muito inteligente e sábio tivesse imaginado tudo aquilo... Certamente a tal "Lei Natural" não podia ter surgido do nada.

Neste momento, percebi que, dentro de minhas limitações, havia entendido Deus também.

Não por explicações de como ele é fisicamente, ou mesmo de sua origem. Mas porque, de fato, eu senti que por trás daquela Lei Natural - ou Divina - só poderia haver uma inteligência superior, que resolvi, a partir de então, chamar de Deus.

Fiquei preocupado: como será que Deus vai reagir quando souber que até agora eu não acreditava nele? Depois de pensar um pouco resolvi propor um acordo:

"Deus, já que você é perfeito, tenho certeza que não ficou muito bravo comigo só porque duvidei um pouquinho de você".

"Além do mais", pensei, "se ele sabe de tudo, já sabia que eu ia acabar acreditando nele".

E fiz minhas pazes com Deus.

André Steagall Gertsenchtein é associado do Instituto Espírita de Educação desde 1985, admirador incondicional de Kardec e deixou de tentar entender coisas que sua pequena cabeça não pode compreender, tal como de onde surgiu Deus.


[1] Chamamos assim ao conjunto dos livros de autoria de Allan Kardec: O Livro dos Espíritos, O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns, O Céu e o Inferno, A Gênese e Obras Póstumas. Este último é uma coletânea de trabalhos dele publicados após seu falecimento.

índice

Nenhum comentário:

Postar um comentário