Ed. 09 – Capa – Kardec e a doutrina espírita hoje

por André Steagall Gertsenchtein

Professor Rivail 

Hippolyte Leon Denizard Rivail nasceu em Lyon, em 1804. Comandava a França então Napoleão Bonaparte, espírito de larga experiência na condução de povos1, com missão de grande importância na França, infelizmente comprometida em parte por sua ambição de conquistador.

Tendo realizado seus estudos fundamentais em Lyon, Rivail ingressou no Instituto Pestalozzi, em Yverdun, Suíça, guardando profunda impressão deste e de seu método educacional.

Concluiu seus estudos2 e se estabeleceu em Paris. Foi membro da Academia Real d’Arras, que premiou em 1831 seu trabalho “Qual o sistema de estudo mais em harmonia com as necessidades da época?”

Casou-se em 1832 com Amélie Boudet, professora primária nove anos mais velha que ele e sua grande companheira durante a tarefa que realizaria mais tarde.

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Após duas experiências empresariais mal sucedidas, Rivail passa a trabalhar fazendo a contabilidade de algumas empresas e, mais tarde, passou a escrever apostilas e livros pedagógicos inspirados nos métodos de Pestalozzi3.

Nascido em uma família de magistrados e advogados, Rivail desde cedo manifestou seu amor pela ciência, pelas letras e, principalmente, pela educação.

Sua formação humanística, progressista, voltada à análise profunda e sintética ao mesmo tempo (reflexo das qualidades de seu espírito) deram a ele as ferramentas para que pudesse, a partir de seu primeiro contato com os espíritos, receber destes os conhecimentos que se tornariam a doutrina espírita.

Primeiro contato com os espíritos

Rivail não teve qualquer contato com os espíritos até 1854, quando tinha 50 anos.

Sempre manifestou interesse em estudar o magnetismo, já popularizado na época por Mesmer4.

Nesta ocasião, em função de seus estudos sobre o Magnetismo, conheceu um magnetizador (Fortier) que mencionou, pela primeira vez, o fenômeno das mesas girantes. Ao ouvir deste que “... o que era bem mais extraordinário é não apenas se fazia mesas girarem, como estas também falavam”, Rivail, sempre prudente, respondeu que “... crerei quando vir, e quando conseguir provar-me que uma mesa dispõe de cérebro para pensar, nervos para sentir...”.

Mas resolveu investigar o assunto. Percebeu, rapidamente, que as mesas girantes – e outros fenômenos correlatos – de fato traziam efeitos inteligentes, pois respondiam a perguntas de forma inequívoca. Rivail concluiu, então, que “...por trás de um efeito inteligente, há que haver uma causa inteligente”. E resolveu perguntar à causa inteligente o que ela era.

Esta respondeu que era um espírito, dando início às comunicações de Rivail com o plano espiritual. Mais tarde recebeu uma comunicação de seu espírito protetor, mencionando tê-lo conhecido durante encarnação anterior nas Gálias, quando, como Druida Gaulês, Rivail era chamado Allan Kardec, nome que Rivail passou então a adotar em todas as suas atividades ligadas aos espíritos.

A presença de Kardec nas reuniões mediúnicas deu a estas um caráter completamente diferente daquele que existia até então: passaram a ser reuniões de perguntas sérias feitas aos espíritos, cada qual recebendo uma ou mais respostas – confirmando as anteriores – também sérias.

Este sistema, de receber mensagens de confirmação, Kardec usou até o fim de sua vida. Às vezes as mensagens eram confirmadas por outras recebidas em cidades distantes ou até mesmo em outros países.

Em 1856 recebe do Espírito Verdade a revelação de sua missão. Na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, abrindo O Livro dos Espíritos, Kardec pondera que “para se identificarem coisas novas são necessários termos novos.” Cria, assim, em oposição ao termo genérico espiritualismo (que ele define como a doutrina que acredita em algo além da matéria), o termo “espiritismo”, definindo o conjunto de princípios detalhados em seus livros.

A “Obra Básica”

A chamada “Obra Básica” de Kardec (O Livro dos Espíritos, O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese e Obras Póstumas) constitui valioso conjunto de ensinamentos expostos de forma didática e concisa.

Além das obras mencionadas, Kardec editou também a Revista Espírita, de janeiro de 1858 a março de 1869, quando faleceu.

No Livro dos Espíritos (publicado em abril de 1857), Kardec dirige à equipe de espíritos responsáveis por sua tarefa, liderados por aquele que se intitulou “Espírito Verdade”5, 1018 questões, nas quais aborda os temas mais variados.

Fizeram parte da equipe de espíritos São Luis6, Santo Agostinho7 (que ditou a conclusão do Livro dos Espíritos), Paulo de Tarso (o apóstolo), Platão e Lamennais8, entre muitos outros. Kardec publica, em seguida, O que é o Espiritismo (1859), pequeno volume destinado a apresentar as “Noções elementares do mundo invisível pelas manifestações dos Espíritos com os resumos dos princípios do Espiritismo e resposta às principais objeções que podem ser apresentadas”9.

O Livro dos Médiuns (janeiro de 1861) detalha as questões relativas às comunicações com o mundo dos espíritos.

Constatando serem os espíritos de naturezas tão variadas quanto as dos encarnados, Kardec estuda o fenômeno mediúnico e estabelece critérios para seu exercício, procurando fazer da mediunidade instrumento de crescimento e de auxílio aos necessitados.

É nesta obra que Kardec ensina critérios seguros para avaliar as informações recebidas através da mediunidade.

O Evangelho segundo o Espiritismo (abril de 1864) trata do aspecto moral da doutrina. Kardec, de forma muito sábia, pondera que “As matérias contidas nos evangelhos podem ser divididas em cinco partes: os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que serviram para o estabelecimento dos dogmas da Igreja e o ensino moral.

As quatro primeiras tem sido objeto de controvérsias, a última, contudo, permanece inatacável...”. Usando de bom senso, Kardec baseia o Evangelho Segundo o Espiritismo (ESE) apenas nos ensinamentos morais de Jesus, que constituem toda a base moral da doutrina espírita. No ESE, trechos do Evangelho – sempre tratando da parte moral – são comentados pelos espíritos da Equipe do Espírito da Verdade e pelo próprio Kardec. O Céu e o Inferno (agosto de 1865) estuda o destino dos espíritos após a desencarnação, segundo sua condição moral.

Traz “... numerosos exemplos sobre a real situação do espírito durante a morte e depois desta”, com grande número de comunicações com espíritos em todas as condições: felizes, sofredores, arrependidos, revoltados, suicidas.

Trata das “penas e gozos futuros”, ou seja, das recompensas e sofrimentos resultantes das nossas ações em vida. Kardec explora nesta obra a visão espírita sobre os conceitos de “Inferno” e de “Céu”, em contraposição aos pregados, na época, pela igreja católica. Derruba, pela lógica e por meio das comunicações recebidas, o conceito das “penas eternas”, esclarecendo que ao espírito sempre há a alternativa de recuperação.

Aborda a visão espírita dos “anjos” e dos “demônios”. Chama a atenção, entre as comunicações, um caso raro de manifestação logo após o falecimento (Espíritos Felizes, Sanson, ex-membro da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas), o relato de um espírito suicida (O Ateu), e o de um criminoso executado através da guilhotina (Lemaire), entre inúmeros outros.

A Gênese (janeiro de 1868) analisa a criação do mundo (origem de seu título), os milagres e as predições segundo o espiritismo. Em A Gênese, Kardec detalha mais o perispírito, já abordado no Livro dos Médiuns, e também um dos temas mais interessantes do mundo espiritual: os fluidos, base da matéria lá encontrada e do próprio perispírito. Completa o conjunto o interessante volume Obras Póstumas, coletânea de trabalhos e opiniões inéditas de Kardec, publicados em 1890 pela Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.

Nele se encontra um grande conjunto de anotações de Kardec sobre o início de suas atividades na doutrina, e também suas previsões sobre o futuro do espiritismo.

É uma obra que reflete todo o amadurecimento de Kardec durante os doze anos de intensa atividade codificando a doutrina espírita. Trata lá da bicorporeidade, da obsessão, da música celeste e de outros temas. Kardec ainda fez publicar um periódico, a Revista Espírita, de janeiro de 1858 até seu falecimento, em março de 1869, com conteúdo de altíssima qualidade e infelizmente pouco estudado pelos espíritas em geral.

A Revista Espírita traz comunicações e informações de grande interesse e valor histórico.

Kardec faleceu em Paris, em 31 de março de 1869, aos 65 anos, pela ruptura de um aneurisma, apenas quinze anos após seu primeiro contato com os espíritos e doze anos após a publicação de O Livro dos Espíritos.

Não deixa de ser um exemplo àqueles que acham que com 50 anos “estão velhos”... Kardec e a doutrina espírita hoje Além de sistematizar os ensinamentos da Equipe de “A Verdade”, Kardec criou uma doutrina que escapou da organização tradicional das religiões.

Não há, no espiritismo, um líder supremo.

O espírita deve buscar, acima de tudo, sua reforma moral.

A doutrina espírita prega um Deus bondoso, cuja justiça é educativa, e não punitiva.

Esta liberdade, ao mesmo tempo que garantiu que a doutrina não passasse a ser propriedade de uma hierarquia (como aconteceu com as demais religiões organizadas) criou alguma confusão em relação ao que de fato pode ser considerado espiritismo ou não.

É espiritismo o que é compatível com os princípios pregados por Kardec. É por isso que estudar Kardec continua a ser a forma mais segura de aprender o espiritismo, permitindo, depois, o estudo de todas as obras de qualidade que surgiram após seu falecimento.

Kardec e Chico

Após o falecimento de Chico Xavier10 muitos espíritas passaram a especular sobre as identidades de Chico e de Kardec, entendendo ser Chico a reencarnação de Kardec. Há aqueles que defendem esta tese (principalmente Carlos Baccelli, médium dos livros de Dr. Inácio Ferreira, ex-dirigente do Sanatório Espírita de Uberaba) e há os que acreditam que as personalidades de Kardec e de Chico não são compatíveis (este autor entre eles).

O fato é que tanto Kardec quanto Chico seriam da opinião que não há nenhuma importância em debater se um é a reencarnação do outro: se fosse informação relevante teria sido amplamente divulgada pelos Espíritos Superiores

1Segundo Emmanuel (“Cartas e Crônicas”) Napoleão Bonaparte viveu antes como Júlio César, último dirigente da República Romana 2Segundo Henri Sausse (in “Biografia de Allan Kardec”) Kardec era bacharel em letras e ciências e doutor em medicina, falando com fluência o alemão, o inglês, o italiano e o espanhol. 3Ainda segundo Henri Sauuse (Ibidem): “Plano apresentado para o aperfeiçoamento da instrução pública”, de 1828, “Curso Prático e Teórico de Aritmética”, 1829, “Gramática Francesa Clássica”, 1841, “Manual dos Exames para Obtenção dos Diplomas de Capacidade, soluções racionais de questões e problemas de aritmética e geometria”, 1846, “Catecismo Gramatical da Língua Francesa”, 1848, “Ditados normais dos Exames na Municipalidade e na Sorbonne”, 1849, e “Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas”, 1849, entre outros. 4Franz Anton Mesmer (Iznang, 23 de maio de 1734 - Meesburg, 5 de março de 1815), médico alemão que desenvolveu o passe magnético. 5Considerado Jesus por alguns espíritas. Ver interessante estudo de Paulo da Silva Neto Sobrinho, de agosto de2003: “O Espírito de Verdade, quem seria ele?” 6Luis IX de França ou São Luis de França (Poissy, França, 1214 – Tunis, Africa, 1270) 7Santo Agostinho ou Agostinho de Hipona (Tagaste, Argélia, 354 – Hipona, Argélia, 430) 8Félicité Robert de Lamennais (1782 -1854), filósofo e escritor político francês. 9Kardec, Allan; “O que é o Espiritismo”; Prólogo. 10Francisco Cândido Xavier (Pedro Leopoldo, 2 de abril de 1910 — Uberaba, 30 de junho de 2002) - Médium espírita de grande expressão.

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